segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Ele, O Todo e Cada Um.



Ele decidiu viver só para ele.
Não era assim que as coisas funcionavam? Individualidade era um valor forte da cultura em que estava inserido, havia dito um sociólogo num programa de TV. Mas não era preciso ser sociólogo para constatar isso. Afinal, havia os anúncios de publicidade.  Os seriados. As caixas de cereal. Sim, as caixas de cereal: não era nelas que ele lia, toda manhã, dicas como “seja você mesmo”, “faça o que tem vontade” e até mesmo “faça o seu destino”? Então.
Os filósofos gregos se perguntavam qual a melhor maneira de viver a vida, mas parece que os contemporâneos dele tinham encontrado a resposta: ser livres para fazer suas próprias escolhas, consumir para atenuar as angústias, viajar, curtir. Cada um do seu jeito. Cada um na sua. Não era assim?, pensou ele. Então, para que remar contra a maré?
Ele trabalhou, ganhou dinheiro, exigiu ser respeitado quando pintou o cabelo, quando raspou o cabelo, quando mudou de orientação sexual, de religião, de ideia, de estilo de roupa, de estilo musical. Ele se entusiasmou e mudou a cor da pele, mudou de gênero, engordou, emagreceu e envelheceu, sempre deixando muito claro que queria ser respeitado como indivíduo.
Ele também queria ter seus bens respeitados, é claro. O indivíduo e as coisas do indivíduo, não é assim que funciona? Ele, o carro dele, a casa dele, os móveis dele, a casa de praia dele, o relógio dele, o computador dele, o dinheiro dele.  Assim como as idéias dele, as opiniões dele, os sonhos dele, a personalidade dele, o gosto dele.
E que bom, ele tinha conseguido ser respeitado, que evoluída uma sociedade assim, que respeita o eu de cada um, o meu do nosso.
Mas tinha um problema. O trânsito.
Respeitarem o estilo de roupa dele, as opiniões dele e os bens dele era muito bacana. Respeitarem a cor dele, o gênero dele e a orientação sexual dele era mais bacana ainda. Mas e o trânsito?
O trânsito não era dele, era de todos, e como cada um foi entrando na dele e na das caixas de cereal, o trânsito foi virando um inferno. Quem queria passar passava, quem queria fechar fechava, quem queria correr corria.
Mas o trânsito foi só o começo do colapso. Ele foi se cansando de viver só para ele. Foi se sentindo vazio. As coisas que eram só dele foram perdendo o sentido. O sentido vinha da reação com os outros e com o todo, mas os outros e o todo só pensavam em cada um. Então cada um foi se angustiando, e o tempo foi passando, com a agonia de vários eus e a morte do todo.
Viver só para ele não estava funcionando.
Então ele pensou bem e decidiu viver só para o todo.
Não fazia muito mais sentido? O que importava era o coletivo.  O interesse de todos supera as necessidades de cada um, ele viu outro sociólogo falando num programa de TV.
Os filósofos gregos se perguntavam qual era a melhor maneira de viver a vida, mas parece que os tribunais gregos não tinham nenhuma dúvida a esse respeito: a propriedade lá não era muito privada, as ações de cada um eram voltadas para a política e quem desobedecia as regras da cidade não tinha direitos individuais, mas uma boa dose de cicuta.
Ele não sabia o que pensar da cicuta, mas não dava mais para viver só pensando em si mesmo, num mundo em que ninguém vive sozinho. Como só pensar em mim, se faço parte de uma sociedade?, ele começou a pensar. O que importa meu computador? Meu carro? O que importa a minha caixa de cereal da minha cozinha da minha casa, o que importa a minha caixa de cereal com mensagens de auto-ajuda quando o mundo está gritando por ajuda?
Ele juntou as pessoas que pensavam como ele e fez um grande todo de gente que pensava no todo. A ideia se espalhou e todo mundo começou a se focar em todo mundo.
Trabalhos foram distribuídos pensando no coletivo, idéias e preocupações foram distribuídas pensando no coletivo, casas foram distribuídas pensando no coletivo, famílias foram orientadas a educar seus filhos pensando no coletivo e, aliás, os coletivos andavam muito bem, obrigado, assim como os carros e motos naquele trânsito que começou a fluir que era uma maravilha.
Mas aí veio o problema da tintura de cabelo.
O trânsito era uma maravilha, mas os fios de cabelo branco dele eram um inferno e, que diabo, ele estava acostumado a tingir o cabelo desde a época em que vivia só para ele. Ele tentou comprar a tintura de sempre, mas parecia que isso de tingir o cabelo não era uma atitude muito coletiva, porque ele não conseguia encontrar a tinta.
Ele foi ficando chateado com isso e se abriu com seus colegas que pensavam no coletivo.
Os colegas, no início, criticaram esse desejo dele de tingir o cabelo, ora, que bobagem anacrônica de tempos individualistas, que capricho bobo, o que importa não é seu cabelo, mas o todo. Mas aí um colega confessou que sentia falta das roupas que usava, e outro disse que sentia falta de uma marca de chocolate de que gostava.
As saudades foram crescendo: da propriedade privada, passaram às alegrias e tristezas privadas.
Da liberdade. De exercerem a profissão que quisessem, de crescerem na profissão que quisessem. De pensar e de falar o que quisessem, de expressarem opiniões diferentes das opiniões do todo. De criar um filho de acordo com seus próprios valores, desfrutar prazeres pessoais e se empenhar por objetivos particulares.  De desejar não só os desejos do todo, mas os desejos de cada um, com a personalidade, as vontades, a história de cada um. De chorar em um canto, mesmo quando o tudo de todos estava bem.
O todo foi agonizando e os indivíduos foram morrendo, um a um.
Ele suspirou.
Ele queria as coisas dele e as coisas do todo.
Ele queria ser um dentro de si e dentro do coletivo.
Ele queria tingir o cabelo, ajudar os outros, ser ele mesmo e fazer parte de algo maior.
Ele queria do fundo da sua alma, daquela alma solitária e agrupada, que morava dentro e fora dele. Ele queria um mundo individual mais humanizado. Um mundo coletivo mais interiorizado.
Ele olhou para si, olhou o céu e sorriu. Ele queria. Era possível?

Nenhum comentário:

Postar um comentário